O lugar da fala na velhice não é apenas uma categoria sociológica. Nem um tema de política pública. É um direito íntimo. Uma urgência ética. Quando envelhecemos, a voz muda. O corpo muda. Mas não deixa de ser potência. Potência de memória. De testemunho. De presença — mesmo quando invisível. A velhice não deveria significar silenciamento. Deveria significar abertura. Espaços de expressão. Espaços de escuta. Espaços de encontro.
Para compreender este lugar, olhamos para a ecologia humana. Esta disciplina mostra como os indivíduos se relacionam com os lugares — físicos, simbólicos, relacionais — que ocupam. E como esses lugares moldam e são moldados pelas nossas experiências. Quem envelhece vive numa ecologia ampla: bairro, casa, vizinhança, paisagens internas de memória, ambiente social, afectos, histórias colectivas. É nesta teia que a fala se insere. Não está sozinha. Ecoa. Atravessa tempo, espaço, gerações.
Cada lugar guarda vestígios. Ruas sem calçar. Vidas improvisadas. Cada muro, cada corredor, cada colectividade tornou-se território de identidade. A fala da velhice não ressoa num vazio. Ecoa nas paredes. Nos caminhos. Nos portões de ferro. No cheiro da terra batida. No asfalto novo. Dar lugar a essa fala é permitir que esses ecos surjam. Que se façam ouvir. Que se partilhem.
Velhice e lugar: o lugar físico — bairro, casa, rua — e o lugar simbólico — aquilo que se deixa morrer no esquecimento ou aquilo que se mantém vivo apenas se for nomeado, contado. A fala é a ponte. Ponte entre o simbólico e o físico. Quando alguém mais velho olha para uma casa antiga, uma rua estreita, um jardim que já foi chão de crianças a correr, e diz: “aqui brincava, aqui vínhamos”, está a recuperar chão. Tempo. Sentido. A fala molda o lugar que mudou, que foi demolido ou reconstruído.
A memória individual e colectiva guarda histórias partilhadas: migração, chegada, habitação, luta por serviços, ocupação, clubes, colectividades, trabalho visível e invisível. Cada trajectória transporta histórias que muitas vezes ficam na intimidade. Ou em círculos restritos da família. Mas há valores profundos: aprendizagem, resistência, transformação, solidariedade. Negligenciar o lugar da fala é perder parte deste tecido humano. Perdemos saberes. Como era viver sem luz pública, sem água canalizada. Como se frequentava um lugar improvisado. Como se aprendia um ofício cedo. Como se entrava em clubes, associações, cidadania feita de baixo para cima.
A fala na velhice toca também a identidade. Muitos sentem-se destituídos de lugar — no trabalho, na família, na cidade. Não são chamados. Não são referidos. Não são ouvidos. E isso promove o esquecimento: de si, dos outros, do vivido. Mas quando se ouve — quando se pergunta, quando se deixa falar — a identidade reconstrói-se. Não são apenas vítima do tempo mas sujeitos que conhecem, que olham, que fazem, que vêem, que escolhem, que esperam, que sofrem, que festejam, que esperam de novo.
Tornar visível o invisível. Dar espaço ao que ficou à margem. Reconhecer que histórias de vida são conhecimento.
Escuta activa. Conversa entre gerações. Testemunho. Um lugar da fala que não é luxo mas necessidade.
— Filipe Faria + Rita Santos
O projecto
Casa das Artes — Arte e Cidadania
A fala e a ecologia humana
Uma casa com quartos infinitos
A intervenção
Vale de Alcântara:
2025/26
2024/25
2023/24
Liberdade:
2025/26
Conceito original
Filipe Faria
Coordenação
Rita Santos
Filipe Faria
Um projecto
O Homem - Colectivo
\Associação para a Ecologia Humana
Em parceria com
Projecto Alkantara
\Associação de Luta Contra a Exclusão Social
Financiamento
Câmara Municipal de Lisboa
Programa BIP/ZIP